“Podem as coisas originar-se do seu contrário?”
Sim. A sombra surge da luz. Mais que isso; a sombra, além de surgir com a luz, se finda com o fim desta e a acompanha aonde quer que ela vá. Entretanto, somente a luz não basta para que haja sombra; é preciso que exista algo a ser iluminado – surge, então, o objeto. Luz e objeto são, portanto, as premissas da sombra. O que tem luz própria ilumina a si próprio de dentro para fora. De seu brilho interior faz-se uma sombra exterior, de maneira tal que o vulto torna-se a manifestação da luz na realidade, sendo sua única parte visível.
Sendo assim, veem-lhe apenas a sombra e nela creem. Platão dir-lhes-ia que estão todos na caverna, mas, caridoso que é, quebraria suas cadeias e conduzi-los-ia à saída pelo caminho mais curto, convidando-os a contemplar a luz que é responsável por gerar a sombra. Há, no entanto, uma impossibilidade física nisso. Não que os vossos olhos ardessem ofuscados ante a luz a qual não estavam acostumados, mas a própria tentativa de se ver a luz sem a sombra pelo lado externo é, em si mesma, a mais completa parvoíce, pois a obscuridade da sombra recobre a luz que a criou, além de ser impossível eliminar a sombra sem se retirar uma de suas necessárias premissas (luz e objeto) – a tríade forma, assim, um todo indissoluto. Ademais, a sombra é, de fato, bastante crível: – ela bebe, ri, pula, dança, fala merda e toma toco das mocinhas. Tem muitos amigos, é a companhia ideal – mas só para aqueles que não a conhecem como sombra.
Aquele que conhece a sombra como sendo sombra – assim como Platão – geralmente a calunia por não ser luz, ou por ocultar a luz, furtando-lhe o direito à presença. Mas quem daria ouvidos a semelhante asneira quando, na verdade, ocorre justamente o contrário? “É pela sombra que se chega à luz!”, grita o sensato, que enxerga o lume que está subentendido nas trevas, porque a sombra pressupõe a luz e vice-versa. A sombra, que como o oráculo de Éfeso, nada diz nem oculta, mas dá sinais, assinala a presença de sua luz, que não pode ser vista, mas apenas pressentida pela presença da sombra.
A luz vive de sua sombra, porque não pode suportar a si mesma. E quando suceder da luz inverter seu eixo de direção, iluminando a si de fora para dentro, produzirá, como num jogo de espelhos, uma luz sem sombras, tão insuportável à própria vista, tão intensamente dolorosa, que só restará a ela implorar: “Mais uma máscara! Uma segunda máscara!...”.
Assim falava uma sombra.
Carlos Artur*
*membro do grupo PET-Filosofia da UFSJ, graduando do 1º período de Filosofia